Título: A Mão Esquerda da Escuridão
Título Original: Left Hand of Darkness
Autor: Ursula Kroeber Le Guin
Editora: Aleph
Número de páginas: 296
Skoob: Adicione a sua estante
Título Original: Left Hand of Darkness
Autor: Ursula Kroeber Le Guin
Editora: Aleph
Número de páginas: 296
Skoob: Adicione a sua estante
Sinopse: Genly Ai foi enviado a Gethen com a missão de convencer seus governantes a se unirem a uma grande comunidade universal. Ao chegar no planeta Inverno, como é conhecido por aqueles que já vivenciaram seu clima gelado, o experiente emissário sente-se completamente despreparado para a situação que lhe aguardava. Os habitantes de Gethen fazem parte de uma cultura rica e quase medieval, estranhamente bela e mortalmente intrigante. Nessa sociedade complexa, homens e mulheres são um só e nenhum ao mesmo tempo. Os indivíduos não possuem sexo definido e, como resultado, não há qualquer forma de discriminação de gênero, sendo essas as bases da vida do planeta. Mas Genly é humano demais. A menos que consiga superar os preconceitos nele enraizados a respeito dos significados de feminino e masculino, ele corre o risco de destruir tanto sua missão quanto a si mesmo.
No excelente texto introdutório da edição que li, Ursula Le Guin compartilha um pouco sua visão extremamente interessante sobre o gênero literário da ficção científica. Para ela, o gênero se define como uma espécie de exercício criativo de “extrapolamento” de consequências, onde, partindo de uma dada premissa fictícia, o autor se coloca a serviço de uma análise, em última instância, do tempo presente. Ou seja: a ficção cientifica usa do futuro, das tecnologias, das guerras e apocalipses mas, em seu cerne, trata de questões atuais - especialmente no que diz respeito aos nossos medos com relação ao futuro (a quantidade de distopias futuristas que existem são um exemplo disso). As observações que autora faz não são originais para um leitor de 2017, porém, isso só comprova como sua visão foi influente no meio, visto que é reproduzida incessantemente sempre que alguém se propõe, assim como eu, a escrever um textinho meia boca sobre o gênero: apoiamo-nos sobre os ombros dos grandes com o intuito de soarmos mais profundos, mais inteligentes. E não há dúvida de que Le Guin pertence ao “Panteão dos Grandes”, pois “A mão esquerda da escuridão”, considerada por muitos como a obra prima da autora (certamente sua obra mais conhecida), é tanto um primoroso exercício de imaginação quanto uma gloriosa análise crítica da humanidade que se sustenta até hoje, além, é claro, de ser uma narrativa magnífica, cheia de tensão, intriga e fascínio.
No entanto, uma questão relevante deve ser
discutida antes de falarmos propriamente da obra. Não gosto muito de falar
sobre a qualidade das edições que leio porque acredito que a função básica de
uma editora é a de prover um produto – no caso, um livro, uma obra de arte –
que seja suficiente, trazendo o texto integral sem erros, minimamente bem
diagramado, compondo uma edição fisicamente resistente na medida das limitações
da mídia. Ao cumprir esse requisitos, a editora não merece enaltecimento, pois
simplesmente cumpriu sua função, sua parte do contrato. Atualmente há muito
esforço editorial para incluir material extra nas edições com o intuito de
conferir alguma exclusividade ao produto, o que é louvável, porém, há muitas
instâncias onde este esforço é em vão e o material extra costuma ser
irrelevante – salvas exceções como o artigo de Sol Yurick na edição de “The
Warriors” DARKSIDE ou a própria introdução de Le Guin neste
livro da Aleph. De fato, esta edição de “A mão esquerda da escuridão” traz um
material extra relevante, porém, a edição é extremamente desrespeitosa com o
trabalho de uma autora tão importante para o mundo da ficção científica –
gênero sobre o qual a editora é especializada. Ora, de que adianta florear as
orelhas e a contracapa do livro com os louros da autora, exaltando suas
premiações e sua relevância literária se o texto, se o conteúdo da obra não
será respeitado? A edição, que contou com DUAS
revisoras, está repleta,
do começo ao fim, de erros de português, palavras e letras repetidas, letras
soltas sem sentido, e nomes que aparecem o tempo todo com grafias diferentes –
o que representa um problema particularmente maior no caso deste livro, uma vez
que os nomes são todos “futuristas”, ou seja, não temos nenhuma base para
deduzir qual seria a grafia correta. Sei que isso não é uma constante nas
edições da Aleph, mas essa está cagada, e se tratando de um trabalho tão
significativo, deveria ter sido melhor desenvolvida. Se Richard Matheson
merece, Ursula Le Guin também merece.
Com essa nota lamentável fora do caminho,
podemos nos dedicar exclusivamente ao romance, que resiste tranquilamente às
tentativas que a edição faz de derrubá-lo. Sua premissa é grandiosa: a
humanidade descobriu que existe vida fora da terra. Mais do que isso, descobriu
que existe vida humana fora da terra, e maneira como essa descoberta toma parte
é que torna tudo mais interessante: os seres humanos não saem desbravando o
espaço à procura da última fronteira, são os alienígenas que vêm até nós e, por
sua boa vontade, decidem nos incluir em seu Ekumen, uma espécie de
“conglomerado” intergaláctico centralizado sob o controle dos pacíficos
hainianos, cujo objetivo é encontrar todas as formas de vida humana no universo
e promover o intercâmbio civilizacional entre elas. A entrada para o Ekumen
traz inúmeros benefícios à raça humana, por exemplo, a capacidade de
comunicação telepática, um conceito muito interessante criado pela autora mas
que não é muito explorado neste livro (“A mão esquerda da escuridão” faz parte
de uma série de livros que toma parte no mesmo universo). Este cenário é
extremamente envolvente e desenvolvido de maneira muito crível. 83 planetas
compõem o Ekumen e as viagens interplanetárias duram décadas, refreando
drásticamente o progresso do “conglomerado”, tornando o esforço de unificação
da humanidade um processo milenar.
Contudo, nada disso é parte central da
história. Em um livro com menos de 300 páginas, Ursula Le Guin constrói um
universo profundo e detalhado como PLANO DE FUNDO. Sério, vai se foder... O
foco da narrativa é o planeta Gethen – ou Inverno, na língua dos terráqueos -,
um planeta coberto pela neve, onde as temperaturas implacáveis não costumam
sair do negativo, onde a pouca vida adaptada para sobreviver ali é forçada a
subsistir de maneira disciplinada, pragmática e extremamente cautelosa. Essas
características particulares dos gethenianos acabam representando obstáculos
inéditos. O ambiente hostil promoveu um certo estancamento do desenvolvimento
técnico: eles encontraram um ponto de equilíbrio com a natureza e não parecem
dispostos a atitudes que interfiram com este estado harmonia (até mesmo
questões banais como a velocidade de seus veículos seguem esse princípio).
Neste contexto altamente criativo, um terráqueo chamado Genly Ai é incumbido
com a missão de convencer que os líderes daquele planeta também se juntem o
Ekumen. Porém, são os humanos de Gethen que realmente chamam a atenção do
leitor: criaturas em geral corpulentas e baixas, cuja fisiologia é exatamente
igual à dos seres humanos, com exceção de suas adaptações naturais para
sobreviver ao frio extremo e de seus gêneros. Os gethenianos são 100%
andróginos, ou seja, não existem homens nem mulheres naquele planeta, apenas
seres humanos. E não é apenas no quesito sexual que a androginia getheniana se
manifesta. Toda sua cultura parte, de uma maneira ou outra, deste “pequeno”
detalhe, algo que a autora usa brilhantemente para desenvolver um discurso
feminista utópico focado em uma ideia de equilíbrio com a natureza.
Este cenário todo é muito bem empregado
como plano de fundo para o desenvolvimento de alguns argumentos muito bem
trabalhados. O patriotismo, por exemplo, é um conceito amplamente criticado
pela autora enquanto instrumento político. Existe uma ojeriza com relação a
este patriotismo que procura virar os gethenianos um contra o outro, colocar
Karhide contra Orgoreyn, por exemplo. Le Guin tem muita admiração por um
patriotismo “real”, o orgulho do lugar de onde se vem, as terras onde nascemos.
Para ela, este patriotismo real é benéfico e até mesmo necessário para impedir
a exploração dos homens pelos homens, pelas elites. O patriotismo
instrumentalizado entra aqui como ideologia no sentido marxista da palavra:
como mecanismo através do qual as massas se convencem de que suas condições são
permanentes, de que não há maneira nem motivo para nos livrarmos dos sistemas
que nos exploram e, pior do que isso, de enxergar no vizinho a raiz de todos
estes problemas (não estou falando que a autora é marxista, e sim que seu
argumento pode ser identificado como marxista - se prestarmos atenção na
maneira como o assunto do patriotismo é desenvolvido, podemos concluir que
qualquer um com senso comum é capaz de compreender e concordar com o raciocínio
da autora e, por mais que tentem nos convencer do contrário, Marx não é o
Demônio, é apenas um grande escritor com ideias influentes que podem, ou não,
ser levadas a sério).
Outro puntifocal da obra é o feminismo,
especialmente o discurso feminista que Gethen e os gethenianos permitem
desenvolver. A autora trabalha o conceito clássico de masculinidade, de
virilidade através da agressão e da dominação, como uma das principais causas
dos conflitos que vivemos na terra. Gethen não possui nem sequer uma palavra em
sua língua que signifique guerra. Isso não significa que não existe conflito,
que aquela sociedade viva em paz permanente. Muito pelo contrário, há sim
conflitos por poder, intriga política, etc. Contudo, isso é tudo desenvolvido
através do diálogo, através do debate e da inteligência encubada em uma série
de tradições e regras que funcionam para impedir a destruição mútua: ganha quem
conseguir dobrar o adversário por meio da lógica, e não da luta (ganha quem for
melhor em jogar com o shifgrethor, um misto de orgulho, tradição, honra e
outros conceitos que nós também conhecemos). Não vence o mais forte, e sim o
mais bem embasado, o que compreende melhor o outro e, por compreender, é capaz
de fazer as concessões necessárias sem perder o próprio foco. Desta maneira,
pode-se dizer que “A mão esquerda da escuridão” também é uma espécie de utopia
feminista, uma analogia onde, por meio da ficção, a autora explora as
consequências do real equilíbrio entre gêneros, seus desdobramentos observados
em uma sociedade onde a “masculinidade tóxica” simplesmente não existe para
gerar problemas.
Equilíbrio é um tema pela qual Le Guin
parece ter predileção. Influenciada, talvez, pela filosofia oriental, a autora
constrói uma narrativa onde o equilíbrio não é apenas um conceito almejado pela
civilização, e sim um conceito absolutamente necessário para a manutenção dela.
A Handdara, doutrina religiosa de Gethen através da qual é possível fazer
previsões verdadeiras do futuro, é a materialização na história deste conceito.
Os videntes handdaratas são capazes de prever o futuro porque reconhecem que
todas as perguntas sobre o futuro que podem ser respondidas são irrelevantes. A
única certeza da vida, a única luz que temos, é que um dia morreremos. A
escuridão, tudo aquilo que é incerto, é a vida. Prever um evento futuro também
implica em prever um ponto de mudança, ou seja, um ponto onde o mundo antes do
evento previsto morrerá, deixará de existir como é, deixará de ser como era
antes da dita mudança. É possível saber a resposta para uma pergunta, porém, é
impossível saber como se chegará lá: “a mão esquerda da escuridão” é a luz, a
certeza, aquilo que sabemos; a escuridão em si é a jornada, aquilo que é
incerto. Ursula Le Guin aponta para a inutilidade de conhecermos o futuro por
que o que importa mesmo é chegar até lá. Não saber como chegar é o mesmo de não
saber nada (sabemos como acender uma fogueira mas pouquíssimos de nós seriam
capazes de realmente fazê-lo). Conhecimento sem prática não é nada,
especialmente quando temos conhecimento de um evento que certamente irá
acontecer, não importando nossa ação no processo. Não importa se conhecemos ou
não a luz, quando nossa vida transcorrerá para sempre na escuridão. Nusut.
Sim, é tudo ficção, mas o desenvolvimento
da autora é tão impressionante que muitas vezes me peguei desejando que não
fosse. Cada vez que abri o livro acabei me tornando alienado ao mundo ao meu
redor, voltando à terra apenas ao fechá-lo novamente. É um livro que causa
fascínio por explorar de maneira tão eficiente questões que nos são caras até
hoje, questões que são mal resolvidas até hoje.
É como se Le Guin tivesse se apoderado da mesma premissa de Alan Moore em “Watchmen” para escrever uma história onde a humanidade só poderia se unir por intermédio de uma raça alienígena. Apesar das premiações relacionadas ao mundo da ficção científica, “A mão esquerda da escuridão” é um livro que deveria ser universalmente reconhecido como a obra prima que é, como o foco de luz neste mundo tomado pela escuridão. Não se deixe desanimar pela edição da Aleph, leia e divirta-se.
***
Este post faz parte da #SemanaGirlPower realizada em parceria com blogs amigos com o intuito de apresentar trabalhos feitos por mulheres incríveis e dar visibilidade aos talentos femininos em mídias variadas em homenagem ao Dia da Mulher (8 de março).
Para conferir o que os outros participantes do projeto estão fazendo, visite os links: Skull Geek - Pipoca Musical - Embarcando na Leitura - Night Phoenix Books
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