Em uma entrevista concedida ao Benff World Media Festival junto com
Dan Harmon (“Community”, “Rick and Morty”), Pizzolatto relata que,
durante as gravações de sua série “True
Detective”, ele e sua equipe, procurando filmar cenas do interior da
Louisiana, encontraram uma estradinha estreita onde uma escola de ballet infantil havia sido construída de
frente com um bar de strip tease. O
que a dicotomia parece sugerir é bastante óbvio: como se o sonho do ballet clássico estivesse, naquelas
condições sociais, preparando aquelas meninas para a degradação do outro lado
da rua. Esse conflito de ideias, para quem assistiu, combinaria perfeitamente
com o tema da série, no entanto, Pizzolatto acabou optando por não usar essas cenas
com a seguinte justificativa: o público vai achar que nós inventamos isso, não
vai parecer autêntico na tela.
Esse relato é
pertinente quando falamos sobre “Galveston”
também, pois o tom do livro é bem parecido com o da série. Nic Pizzolatto, em
ambos os casos, escolhe relatar a realidade na qual cresceu de maneira crua e
direta, focando sobre os seus aspectos mais cruéis e arrasadores. Temas como
violência doméstica, mulheres enquanto objetos de posse, crime organizado
enraizado na dinâmica social e o pessimismo com relação ao futuro são centrais tanto
no livro quanto na série; tudo narrado a partir da perspectiva de protagonistas
que são tão observadores quanto atores, que filosofam sobre seu ambiente, sobre
si mesmos e sobre si mesmos inseridos no ambiente (ficando, inclusive, a
impressão de que o autor tem alguma coisa entalada na garganta). Não se engane:
“Galveston” é um livro avassalador,
do tipo que faz você mandar a parede tomar no cu; e não por se tratar de uma
tragédia, mas por se tratar de uma história tão realista, digna de jornalecos
sensacionalistas.
O romance narra a trajetória de Roy “Big Country” Cady, que consegue escapar de uma emboscada armada por seu próprio chefe, Stan Ptitko, com alguns documentos extremamente incriminadores e uma jovem prostituta que quase morreu junto por tabela. Os dois fogem para o interior, até a cidade de Galveston, e a história gira, basicamente, em torno da dinâmica entre esses dois personagens frente à perspectiva de serem assassinados a qualquer momento pelos capangas de Ptitko. Em um primeiro momento, fica a impressão que Pizzolatto projeta muito do que ele mesmo gostaria de ser sobre seu protagonista, que aparece como um cara ~durão~ que não leva desaforo para casa e prefere os carros antigos porque são grandes e barulhentos (o sonho molhado de macho alfa alt-right), no entanto, a narrativa vai se desenvolvendo de maneira a mostrar Big Country como um homem extremamente complexo, de maneira a problematizar com profundidade a maneira como esse jeito turrão não faz nada além de dificultar a vida do protagonista e tornar a vida daqueles ao seu redor miserável (bem distante do fodão que aparenta ser no início, ou seja, se você se desanimar com isso no começo, aguenta que melhora). O livro é, inclusive, repleto de homens decadentes e presos ao passado, o que acaba funcionando como uma crítica perspicaz à masculinidade que força homens a serem dominadores e a esconderem seus sentimentos ao passo em que cria um ambiente de constante medo e alerta para os demais gêneros.
Os Estados Unidos
retratados aqui são bem diferentes das utopias hollywoodianas. Vemos pessoas
racistas e mal educadas (produtos de um sistema educacional baseado na
individualidade e, portanto, falho), perambulando pelas avenidas ou dirigindo
embriagadas e sem muita razão de viver. O autor usa da experiência pessoal para
expor uma sociedade racista, machista, conservadora e que se desenvolve em um
ambiente decadente, sempre sujo, empoeirado, arruinado ou mascarado; abandonado
pelas autoridades e governos, onde as pessoas estão sempre à mercê das forças
da natureza e umas das outras (Pizzolatto é muito eficiente em estabelecer uma
atmosfera claustrofóbica onde ninguém está seguro em nenhum momento). E se você
acha que isso é fruto dos anos 1980 e que, hoje em dia, as coisas estão
melhores, dê uma pesquisada em “Detroit
Ghost City” ou “Miami Ghettos”.
Acho que já falei
bastante sobre isso, mas é bom reforçar que a narrativa de Pizzolatto é
extremamente cativante e cheia de construções estimulantes para a imaginação.
Há trechos onde o autor abandona o segmento da história por um ou dois
parágrafos para coletar as impressões de seu protagonista sobre o ambiente e é
como se pudéssemos sentir os aromas ácidos e as texturas oleosas. Mas não é por
conta dos momentos contemplativos que a história fica arrastada, muito pelo
contrário: “Galveston” é um livro
curto e dinâmico, facilmente devorável em um ou dois dias se você se deixar
levar (ou se tiver muito tempo nas mãos, né? Isso não é uma competição!).
Em um mundo mais estranho que a ficção, onde não existe justiça nem saída fácil, onde somos todos espremidos até que todas as nossas ambições e sonhos nos escapem, as vezes é bom tomar umas 4 horas da sua vida para ler um livro tão cruel e visceral quanto, mas que apresenta uma centelha de esperança, uma esperança relativa e de altíssimo custo, onde ninguém sai ileso, onde o buraco proverbial é mais embaixo. É o tipo de choque de realidade que só a ficção pode nos proporcionar, por mais paradoxal que isso possa parecer.
Imagens de Galveston nos anos 1980 podem ser encontradas aqui.
Autor: Nic Pizzolatto
Editora: Intrínseca
Número de páginas: 240
Skoob: Adicione a sua estante
Classificação: ★★★★★♥/✰✰✰✰✰
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