quarta-feira, 16 de maio de 2018

[Resenha?] Amadeus, de Milos Forman


O corte do diretor de “Amadeus” é um filme gigantesco, ultrapassando as três horas de duração; algo que, atualmente, torna muito difícil sua apreciação. E não é só por não termos tempo, mas também porque computadores e celulares estão sempre manipulando nossos cérebros primatas com seus LEDs piscantes e notificações sonoras. Por conta disso, tenho esse filme em minha lista já a algum tempo mas hesitei em assisti-lo justamente pelo tempo que teria de investir nele (lembra quando você maratonava cada volta e meia a versão estendida de “Senhor dos Anéis”? The good ol’ days...). Infelizmente foi um evento trágico que me motivou a sair dessa inércia: o recente falecimento do diretor Milos Forman, responsável por outras grandes obras como “Um Estranho no Ninho”, “O Mundo de Andy” e “O Povo Contra Larry Flint”, além, é claro, do próprio “Amadeus”. Portanto, decidi dar o respeito a esse grande realizador e encarar o que, para diversos críticos, é seu magnum opus.
Milos Forman trocando ideia com José II e Mozart

O filme conta a história de Antonio Salieri, um requisitadíssimo compositor de opera que viveu entre os séculos XVIII e XIX, que, contagiado por um misto paradoxal de inveja e admiração, usa de seu poder e influência junto à corte para destruir a carreira e, em última instância, matar o famoso compositor Wolfgang Amadeus Mozart. A narrativa se desenvolve a partir do momento onde Salieri, consumido pela tragédia que causou, sucumbe à loucura e tenta arrancar a própria vida. Internado em um hospital psiquiátrico (que, à época, era mais um depósito de loucos), o compositor rememora sua vida junto a um padre interessado em absolve-lo de seus pecados.

Essa história de que Salieri teria envenenado Mozart é muito antiga, porém, não possui muitas evidências a seu favor. O que se sabe é que Salieri realmente invejava a qualidade do trabalho de Mozart e que o austríaco, já padecendo da doença que veio a tirar-lhe a vida, teria dito à esposa que não sabia porque estava tão doente e que alguém certamente deveria estar tentando envenená-lo. Para além disso, o que parece ter de fato conectado Salieri à morte de Mozart é a peça “Mozart e Salieri”, escrita pelo famosíssimo Alexandre Pushkin, onde a relação entre os maestros é usada como uma forma de demonstrar os perigos da inveja. Portanto, jamais saberemos a verdade sobre o caso, mas é bastante provável que não seja verdade, especialmente pelo prestígio do qual gozava Salieri que, embora não tenha composto peças tão famosas quanto seu rival, era profundamente respeitado e requisitado como professor, chegando a treinar Beethoven, Schubert e Liszt.

“Amadeus”, no entanto, não está nem aí para os fatos e, assim como a peça de Pushkin, usa da ficção histórica para tratar de temas humanísticos, e não para discutir conspirações no mundo da música clássica (o que o torna muito mais interessante). O filme trabalha constantemente a dicotomia que existe entre a figura de nosso narrador, que se considera um compositor competente, porém, medíocre (o que fica marcado em nossas mentes na fantástica cena onde Salieri se coroa o Santo Patrono da Mediocridade), e Mozart, a quem Salieri admira profundamente desde a infância. Forman é extremamente competente em demonstrar essa diferença entre as personagens: a maneira como o público aprecia a obra de Salieri mas se impressiona muito mais com a de Mozart, a maneira como parece haver uma força sobrenatural guiando a pena do austríaco ao passo em que o italiano não consegue sequer compor uma marchinha sem recorrer à oração. Salieri agrada, Mozart impressiona; Salieri atinge seu objetivo, Mozart transcende.

Antonio Salieri bolado
E dessa diferença entre as personagens, que pode muito bem ser resultado da percepção distorcida de nosso narrador, nasce admiração. Da admiração nasce a inveja. E, dessa inveja, vai brotando um profundo ressentimento, especialmente pela maneira como o genial Mozart parece desdenhar da obra de Salieri e pior, torná-la superior sem muito esforço. Salieri é uma personagem tão boa justamente pela maneira contraditória como é retratada ao longo de toda a narrativa: ele trabalha para arruinar a vida de seu rival mas é um dos únicos que atendem a todas as suas operas e as aprecia com profunda admiração. Dessa maneira, ainda que seja impossível defender sua conduta, acabamos sentindo pena daquele velho louco que só queria ser um grande músico (por que Deus fez de mim um músico se eu nunca serei bom?).

O filme é dirigido de maneira brilhante e retrata muito bem a exuberância das cortes: os exageros dos salões gigantescos, as pratarias, as festas, as orquestras. Também demonstra relativamente bem a dinâmica dentro da corte, as relações entre empregados e nobres. A fotografia e o design dos cenários fazem com que cada quadro seja digno de uma pintura, sempre destacando as simetrias e sempre criando dicotomias entre claro e escuro, luz e sombra, felicidade e tristeza. O tom do filme também oscila frequentemente entre o humor e o drama, removendo qualquer monotonia da narrativa e refletindo muito bem a mente conflitante do narrador, que fica feliz quando lembra da obra de Mozart, ressentido quando lembra da própria e deprimido quando lembra do que fez.

“Amadeus” é, por mais que tenha três horas de duração, um filme que deveria ser assistido. Milos Forman não foi o tipo de diretor autoindulgente que que produziu obras para si mesmo e que repeliu audiências por conta disso (e depois reclamou que ninguém queria ver seus filmes porque eram incapazes de compreender sua genialidade): seu trabalho está profundamente enraizado em um compromisso de respeitar a audiência, em entreter na mesma medida que choca e comove (o documentário “Jim and Andy” demonstra muito bem a que provações ele estaria preparado a passar para obter o melhor resultado possível em seu filme... Fuck Jim Carrey). Nesta fase em que o cinema blockbuster gira em torno da ação desenfreada e ininterrupta, vale a pena sentar com um balde de pipoca e apreciar um pouco de drama e música clássica. Nem que seja para descansar até o próximo Vingadores.


Diretor: Milos Forman
Ano: 1984
Duração: 144 minutos
Classificação: ★★★★★/✰✰✰✰✰

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