domingo, 29 de julho de 2018

[Resenha?] O Corvo, de James O'Barr


“O Corvo” é uma obra poderosa e que tocou a vida de muitas pessoas ao longo dos anos em que entrou e saiu de catálogo. Tragédias, arrependimentos e mudanças envolveram seu processo de estabelecimento enquanto um dos maiores sucessos dos quadrinhos independentes até hoje, que pavimentou o caminho para muitas outras obras e despertou o interesse de muitos outros fãs por uma cena artística que não está no radar do público geral. O que não quer dizer que James O’Barr realizou um trabalho perfeito.

É difícil criticar “O Corvo” por dois motivos em específico: primeiro que James O’Barr era, claramente, um amador fazendo seu melhor; segundo que James O’Barr não estava no melhor estado psicológico para a construção de uma obra concisa e bem amarradinha. Para nós leitores, ainda bem. Na verdade, essas duas características são as mais marcantes do livro e, ao passo em que geram resultados aquém do que poderiam, são o que “faz” a obra; são o charme, o carisma e a espinha dorsal desta HQ que é tão visceral quanto o sentimento que a inspirou.

O'Barr cuzão nem é gótico.
É sabido que O’Barr realizou essa obra em um momento muito difícil de sua vida, onde o luto consumia seus dias de maneira doentia. Segundo o próprio, cada página de “O Corvo” veio carregada com pinceladas de ódio pelo mundo e por si mesmo, quase como em um frenesi desesperado para exorcizar os próprios demônios. Nunca tive a oportunidade de ler essa obra sem saber deste triste passado mas, em última instância, acho que é melhor assim. Sem essa informação “O Corvo” pode ser uma HQ pouco centrada, uma história cliché de vingança contada através de um prisma mais original por um autor cujas influências vão de Rimbaud à Kirby mas cuja capacidade técnica de desenhar não é das melhores. Com essa informação, “O Corvo” é um manifesto vivo sobre depressão, luto, culpa e inação.

Muito como em um filme de Gaspar Noé, o que acontece nas páginas de “O Corvo” se mistura com a experiência pessoal do autor de maneira mais profunda do que o que estamos acostumados. Não que o que esteja acontecendo na história reflita quadro a quadro o que aconteceu na vida do autor, mas há momentos em que, claramente, O’Barr oferece-nos uma janela para seu próprio passado, expõe sua vida e seus segredos para que nós, completos estranhos, possamos compreender a raiz de seu sentimento e ser tocados por ele. Ao mesmo passo em que ele exorciza seus próprios demônios, oferece-nos uma oportunidade, um caminho para exorcizar os nossos. Não é por acaso que tantas pessoas tenham essa HQ tão pouco convencional como sua favorita.

E para os críticos que acreditam que uma obra deve sustentar-se sobre os próprios pés sem depender necessariamente do conhecimento prévio do leitor, devemos lembrar que a arte não é exatamente um produto que deve, obrigatoriamente, estar aberto e acessível ao consumo. Há muitos filmes de sátira política e social, por exemplo, que simplesmente não funcionam se o expectador não souber de quem o autor está falando. Há muitas biografias sobre personagens pouco conhecidos. Essas obras estão conceitualmente erradas? Claro que não. Regras como essa, ainda que úteis, não necessariamente refletem qualidade de roteiro e sim uma necessidade que os realizadores tem de vender seu produto. Portanto, ao invés de nos sentirmos traídos por não sabermos sobre o que foi baseada tal obra, é mais produtivo que tomemos a oportunidade para aprender algo novo e seguir adiante. Se necessário, reler. A cultura do consumo geek/nerd é centrada em uma necessidade por conhecer simplesmente sem nunca refletir: é mais importante ter lido “Senhor dos Anéis” do que extrair qualquer coisa da experiência; é mais importante ter assistido “Star Wars” (a versão original em que o Han Solo – como se isso fosse interferir na vida de alguém - atira primeiro, senão você é pior que um estuprador pedófilo), do que ter gostado. Se não sabíamos de algo importante antes de consumirmos uma determinada obra, está aí uma excelente oportunidade para reconsumir!

Com uma arte irregular, um roteiro por vezes claro e por vezes confuso e uma origem conturbada, “O Corvo” é uma obra que cativa pela visceralidade e pela falta de auto censura, até mesmo por uma eventual falta de controle. Ainda que conte com vilões incomodamente caricatos e uma história cliché sobre vingança, entrega um produto final que é, definitivamente, muito maior do que a soma de suas partes. Seguindo o conselho de Ernest Hemigway, James O’Barr sentou-se em frente à máquina de escrever e sangrou. O resultado final é chocante, marcante e terrivelmente lindo.


Autor: James O'Barr
Editora: Darksidebooks
Número de páginas: 272
Classificação: ★★★★★/✰✰✰✰✰

*Livro cedido em parceria pela editora*

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