“O Corvo” é uma obra poderosa e que tocou a vida de muitas pessoas ao longo dos anos em que entrou e saiu de catálogo. Tragédias, arrependimentos e mudanças envolveram seu processo de estabelecimento enquanto um dos maiores sucessos dos quadrinhos independentes até hoje, que pavimentou o caminho para muitas outras obras e despertou o interesse de muitos outros fãs por uma cena artística que não está no radar do público geral. O que não quer dizer que James O’Barr realizou um trabalho perfeito.
É difícil criticar “O Corvo” por dois motivos em específico: primeiro que James O’Barr era, claramente, um amador fazendo seu melhor; segundo que James O’Barr não estava no melhor estado psicológico para a construção de uma obra concisa e bem amarradinha. Para nós leitores, ainda bem. Na verdade, essas duas características são as mais marcantes do livro e, ao passo em que geram resultados aquém do que poderiam, são o que “faz” a obra; são o charme, o carisma e a espinha dorsal desta HQ que é tão visceral quanto o sentimento que a inspirou.
O'Barr cuzão nem é gótico. |
É sabido que O’Barr realizou essa
obra em um momento muito difícil de sua vida, onde o luto consumia seus dias de
maneira doentia. Segundo o próprio, cada página de “O Corvo” veio carregada com
pinceladas de ódio pelo mundo e por si mesmo, quase como em um frenesi
desesperado para exorcizar os próprios demônios. Nunca tive a oportunidade de
ler essa obra sem saber deste triste passado mas, em última instância, acho que
é melhor assim. Sem essa informação “O Corvo” pode ser uma HQ pouco centrada,
uma história cliché de vingança contada através de um prisma mais original por
um autor cujas influências vão de Rimbaud à Kirby mas cuja capacidade técnica
de desenhar não é das melhores. Com essa informação, “O Corvo” é um manifesto
vivo sobre depressão, luto, culpa e inação.
Muito como em um filme de Gaspar
Noé, o que acontece nas páginas de “O Corvo” se mistura com a experiência
pessoal do autor de maneira mais profunda do que o que estamos acostumados. Não
que o que esteja acontecendo na história reflita quadro a quadro o que
aconteceu na vida do autor, mas há momentos em que, claramente, O’Barr
oferece-nos uma janela para seu próprio passado, expõe sua vida e seus segredos
para que nós, completos estranhos, possamos compreender a raiz de seu
sentimento e ser tocados por ele. Ao mesmo passo em que ele exorciza seus
próprios demônios, oferece-nos uma oportunidade, um caminho para exorcizar os
nossos. Não é por acaso que tantas pessoas tenham essa HQ tão pouco
convencional como sua favorita.
E para os críticos que acreditam que
uma obra deve sustentar-se sobre os próprios pés sem depender necessariamente
do conhecimento prévio do leitor, devemos lembrar que a arte não é exatamente
um produto que deve, obrigatoriamente, estar aberto e acessível ao consumo. Há
muitos filmes de sátira política e social, por exemplo, que simplesmente não
funcionam se o expectador não souber de quem o autor está falando. Há muitas
biografias sobre personagens pouco conhecidos. Essas obras estão conceitualmente
erradas? Claro que não. Regras como essa, ainda que úteis, não necessariamente
refletem qualidade de roteiro e sim uma necessidade que os realizadores tem de
vender seu produto. Portanto, ao invés de nos sentirmos traídos por não
sabermos sobre o que foi baseada tal obra, é mais produtivo que tomemos a
oportunidade para aprender algo novo e seguir adiante. Se necessário, reler. A
cultura do consumo geek/nerd é centrada em uma necessidade por conhecer
simplesmente sem nunca refletir: é mais importante ter lido “Senhor dos Anéis”
do que extrair qualquer coisa da experiência; é mais importante ter assistido
“Star Wars” (a versão original em que o Han Solo – como se isso fosse
interferir na vida de alguém - atira primeiro, senão você é pior que um estuprador
pedófilo), do que ter gostado. Se não sabíamos de algo importante antes de
consumirmos uma determinada obra, está aí uma excelente oportunidade para
reconsumir!
Com uma arte irregular, um roteiro por vezes claro e por vezes confuso e uma origem conturbada, “O Corvo” é uma obra que cativa pela visceralidade e pela falta de auto censura, até mesmo por uma eventual falta de controle. Ainda que conte com vilões incomodamente caricatos e uma história cliché sobre vingança, entrega um produto final que é, definitivamente, muito maior do que a soma de suas partes. Seguindo o conselho de Ernest Hemigway, James O’Barr sentou-se em frente à máquina de escrever e sangrou. O resultado final é chocante, marcante e terrivelmente lindo.
Autor: James O'Barr
Editora: Darksidebooks
Número de páginas: 272
Skoob: Adicione a sua estante
Classificação: ★★★★★/✰✰✰✰✰
*Livro cedido em parceria pela editora*
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