“ROTA 66 – A História da Polícia que Mata” é um livro que lemos desejando que fosse ficção. O autor até tenta dar ares de ficção, inserindo diálogos e contando histórias de maneira proseada, mas somos constantemente relembrados de que o que estamos lendo é baseado em uma pesquisa que durou 20 anos e que tinha por objetivo analisar o sistema de extermínio da ROTA, o perfil dos assassinados e a maneira com a qual a sociedade incentiva essas condutas. O resultado final é um livro chocante que surpreende até quem já não tem muito apreço pela tática policial nem pela maneira como a polícia é utilizada, através de financiamento público, para oprimir toda uma camada social em prol da “defesa da propriedade”. Somos expostos a uma série de casos em que inocentes – inocentes de fato e não por dedução – perdem suas vidas por estarem no lugar errado na hora errada, quando não por confiarem na polícia.
“O soldado gritou: Para que é polícia! O homem continuou correndo. Levou
bala nas costas. Sabe porque não parou? Era surdo, disseram os parentes”
(Página 152).
O livro abre – de maneira muito
cinematográfica, inclusive – narrando um incidente ocorrido em São Paulo, em um
bairro nobre, onde três jovens da alta classe foram perseguidos e brutalmente
assassinados pela ROTA por terem sido confundidos com ladrões de carro (os
jovens não eram inocentes: estavam roubando o rádio do carro de um amigo – não
se sabe se para vender ou para pregar uma peça – mas ladrões de carro, o motivo
pelo qual foram assassinados, com certeza não eram). A localização do homicídio
e a casta das vítimas acabou chamando a atenção da mídia, desenrolando o
processo em uma investigação criminal que obteve ampla cobertura nacional. No
entanto, o que chamou tanto a atenção da classe média e da elite paulistana era
de conhecimento da maioria periférica já a muito tempo: o modus operandi da polícia militar sempre foi violento e sem
remorso, calcado em um sistema extremamente corrupto de acobertamento e
arbitrariedade.
“Mas teriam os policiais de fato praticado um crime? O resultado do
levantamento mostra que, por exemplo, cinco suspeitos, que não portavam
documentos ao serem mortos, foram enterrados como indigentes. Significa que
foram fuzilados sem se saber se eram criminosos ou não.” (Página 97).
A sociedade, e eu admito que já fui
culpado desse crime, apoia as atitudes da polícia por medo da criminalidade e
por acreditar que a violência, ainda que desenfreada, é justificada pela
violência da bandidagem. A sociedade gosta de acreditar que o policial é um ser
honesto, determinado a proteger-nos por uma mixaria (ai deles se quiserem um
aumento). Quantas vezes não ouvimos ou proferimos a frase: “Mas se um cara
entra na sua casa, rouba suas coisas e estupra sua mulher e sua filha, você não
pode fazer nada? Você tem que deixar?” E é aí que mora o perigo, por dois
vieses.
“O gesto “humanitário” de Nepomuceno [levar o criminoso já morto ao
hospital para dar a entender que os policiais não tinham intenção de matar] é uma repetição do que ele fez naquela
noite que comandou o caso da Rota 66. Sua primeira atitude, após o fuzilamento,
é o de violar a cena do local da morte.
Ele manda os soldados usarem as cortinas da casa para enrolar o corpo de
Bossato e levá-lo às pressas ao hospital.” (Página 126, grifo nosso).
Em primeiro lugar: não se exige
empatia de ninguém. Se uma pessoa cometesse atrocidades dessa natureza, sua
vítima estaria justificada a buscar vingança. Analisar a ação da polícia
militar não significa defender criminosos. Significa, porém, garantir que o seu
dinheiro não está sendo usado para financiar grupos de extermínio que só fazem
geram mortes arbitrárias (ou não tão arbitrárias, dado que a maior parte das
vítimas são pretos e pardos pobres), e não resolvem o problema da segurança
pública. Além disso, essa vingança pública é um evento triste, e não
espetacular. Não é legal vivermos em uma sociedade onde um criminoso tortura um
ser humano e recebe tortura da polícia. É triste! Enquanto o pênis de
militaristas e defensores do massacre urbano enrijece a cada assassinado
promovido com o seu dinheiro, o sistema gerador de violência permanece o mesmo
ano após ano.
“Nessas duas décadas de existência da PM o número de crimes de civis
sempre cresceu em um proporção bem menor
em relação aos homicídios praticados por policiais militares durante o
patrulhamento” (Página163, grifo nosso).
Em segundo lugar: a pesquisa de
Barcellos demonstrou que a principal justificativa para a violência policial –
ou seja, o extermínio de estupradores e latrocinas – representou menos de 1%
dos homicídios cometidos pela PM ao longo de 20 anos. Menos de 1%. Das mais de
4 mil mortes oficiais (e a oficialidade é outro problema por si mesmo),
registradas ao longo desse período, menos de 1% foram de estupradores ou
latrocinas. Significa que, se afirmarmos, para fins puramente analíticos, que
as ações da PM são justificadas porque ela tem o dever de nos proteger de
criminosos perigosos, ao longo desses 20 anos, ela fez um péssimo trabalho.
Muito pelo contrário: Barcellos demonstra através de exemplos que esses
policiais que envolvidos em perseguições cinematográficas geram gastos aos
cofres públicos de proporções igualmente hollywoodianas: para perseguir e matar
um ladrão que roubou o relógio de um frentista, a PM gerou o prejuízo de mais
de 150 mil dólares (lembrando que, à época, isso era muito mais dinheiro). O
suspeito foi assassinado. O frentista nunca recebeu seu relógio de volta. (Páginas 198-200).
“Durante nossas investigações dos crimes do Tenente Gilson Lopes,
descobrimos que os matadores costumam se revezar nas ações de rua e de
investigação dos próprios crimes”
(Página 240, grifo nosso).
Não se trata de desmoralizar o
policial trabalhador que tenta levar uma vida honesta. Muito pelo contrário.
Como você acha que esse tal PM honesto se sente toda vez que um PM assassino e
corrupto é glorificado na TV? Denunciar o policial bandido é, em primeiro
lugar, reconhecer o trabalho do policial honesto. Barcellos constrói sua
denúncia em um livro muito fácil de ler, com linguagem acessível e uma
estrutura fácil de seguir, características que nem sempre acompanham trabalhos
tão extensos quanto o dele. O autor faz uso, inclusive, de subterfúgios da
ficção para instigar o leitor a continuar, intercalando a narrativa de um fato
com a de outro, por exemplo. É um livro de fácil compreensão e que, por conta
da temática problemática que aborda, poderia facilmente ser usado em salas de
aula no ensino médio ou até mesmo nos anos mais avançados do ensino fundamental.
“Isso significa que, entre as pessoas mortas pela PM que conseguimos
identificar, Segundo a Justiça, apenas 34,6 por cento já estiveram envolvidas
em crimes na capital.” (Página 318).
Em um país onde a criminalidade
atinge níveis incontroláveis, o cidadão POBRE E DE BEM se vê cercado e tendo
que escolher se prefere morrer na mão da polícia ou do bandido. O livro de
Barcellos continua tão atual quanto no ano em que foi publicado. Portanto, é
bem vinda a reflexão: quando um criminoso causa algum mal a um cidadão, isso
não significa que o policiamento falhou? A violência excessiva da polícia não
deveria servir para prevenir a violência criminosa? Por que não funciona? Por
que a violência no Brasil só aumenta? Não seria mais pertinente e produtivo
refletir sobre as informações que o livro traz ao invés de ficar babando e
glorificando a violência, muitas vezes, arbitrária? A vida de um inocente é
descartável em prol da sua segurança e do seu medo? Refletir e ter amor pela
vida, buscando a paz, não faz de você um comunista maconheiro defensor de
bandido. Não seja burro.
*A edição lida foi a de 2017 pela Record.
Autor: Caco Barcellos
Editora: Record
Número de páginas: 352
Skoob: Adicione a sua estante
Classificação: ★★★★★♥/✰✰✰✰✰
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